Um golaço de voleio do Richarlison, que registra na história do futebol a consistente vitória do Brasil sobre a Sérvia por 2 a 0; uma goleada quase sem igual da Espanha por 7 a 0, sobre a Costa Rica; duas zebras das mais inesperadas, a vitória do Japão sobre a sempre poderosa Alemanha e da Arábia Saudita sobre a temida Argentina. Esses são apenas alguns dos belos momentos que dão a uma Copa do Mundo o poder de mexer com os sentimentos de bilhões de pessoas de todas as etnias, onde quer que elas estejam.
Além do espetáculo lúdico em campo, a Copa é descrita há décadas como uma grande festa entre os países. O planeta se mobiliza por um mês durante as transmissões ao vivo de suas partidas, que reúnem os mais habilidosos jogadores dos cinco continentes, e literalmente para assistir à final, que garante por quatro anos o título de melhor time do esporte mais amado pela Humanidade. No entanto, o torneio deste ano, no Catar, o primeiro disputado no Oriente Médio, tem sido fiasco atrás de fiasco em relação ao respeito aos direitos humanos.
Os relatos dão conta que os descalabros da Copa são incontáveis e já ocorrem há anos, desde que a preparação do campeonato começou. As primeiras denúncias, sem contar a antiga suspeita de compra de votos pelo Catar para ser escolhido como país-sede, vieram das obras de estádios. Nelas, muitos migrantes têm sido subjugados a condições análogas a escravidão, sem qualquer direito trabalhista ou garantia de segurança, o que custou 6,7 mil vidas de trabalhadores. Agora, há algum tempo, não param de pipocar outras, igualmente sérias, de censura à imprensa, discriminação a pessoas LGBTQIAP+ e afronta aos direitos das mulheres.
O assunto tem estampado de modo recorrente a imprensa mundial a brasileira incluída, como o Estadão, para ficar em apenas um exemplo, que mostrou, em ampla reportagem em setembro, detalhes dos abusos aos direitos fundamentais que assolam a organização do monumental evento esportivo. Mas, como se diz popularmente, basta dar um Google com os termos copa, Catar, violações a direitos, para conferir a extensão e a gravidade da questão.
No Catar, cuidado!
Num cenário tão adverso, a Human Rights Watch (HRW) se pronunciou dias antes do início da competição, para denunciar que a Copa do Mundo ( ) será disputada após anos de graves abusos trabalhistas de pessoas migrantes e de direitos humanos no Catar, e reafirmar que o lado sombrio do torneio está ofuscando o futebol. A entidade até publicou um Guia para Jornalistas (em inglês), voltado a apoiar profissionais da imprensa durante seu trabalho, bem como a orientá-los a se defender de riscos, na cobertura do evento.
No lançamento do manual, a HRW afirmou que o legado da Copa ( ) dependerá do Catar e da Fifa promoverem indenizações por conta das mortes e outros abusos sofridos por trabalhadores migrantes que construíram a infraestrutura do torneio, implementar de fato as reformas trabalhistas recentes e proteger os direitos humanos de todos no Catar não apenas de torcedores e atletas.
Sem vergonha
Enquanto isso, o discurso oficial da Fifa, a proprietária dos polpudos negócios que o futebol gera mundo afora, e que só com o torneio mundial deste ano vai embolsar cerca de US$ 6,44 bilhões, continua a repetir o blá-blá-blá que a Copa do Mundo é uma grande confraternização entre as nações, sem coloração política e com respeito a todas e todos. Na véspera da abertura do torneio, seu presidente, o italiano Gianni Infantino, tentou rebater as denúncias de evidente desrespeito a minorias pelo governo catari e pela organização do evento, mas
Suas palavras, no fundo, só mostraram que a elitista entidade que ele comanda é, no mínimo, conivente com tudo o que tem sido criticado. Hoje me sinto catari, hoje me sinto árabe, hoje me sinto africano, hoje me sinto gay, hoje me sinto deficiente, hoje me sinto trabalhador migrante ( ). Eu sei como é ser discriminado Sofri bullying porque era ruivo, disse, sem sequer se envergonhar de tamanha desfaçatez.
Catar, atraso e mentiras
Um porta-voz do governo catari, por sua vez, havia dito dias antes: nossos registros mostram que recebemos calorosamente todas as pessoas, independentemente do histórico. Em seu pronunciamento, disse também que não importa sua raça, sua religião, sua orientação social e sexual, você é muito bem-vindo, e os cataris estão prontos para recebê-lo com a melhor hospitalidade que você pode imaginar, e complementou que o Catar é um país conservador e qualquer manifestação pública de afeto, independentemente da orientação, é desaprovada.
As boas-vindas do anfitrião, no entanto, têm se desmentido na prática. São muitos os relatos de intimidação, inclusive a partir de erros, como aconteceu com um jornalista brasileiro, intimidado por policiais em Doha porque carregava uma bandeira de Pernambuco, que tem listas coloridas e foi confundida com o símbolo do movimento LGBTQIAP+, proibido e perseguido no país.
Protestos e resistência
Diante do quadro, as delegações de Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Holanda, País de Gales e Suíça reagiram e decidiram que seus capitães entrariam em campo com a braçadeira do chamado movimento One Love, que traz as cores do movimento LGBTQIAP+. A Fifa logo se ouriçou e ameaçou desferir cartão amarelo ao capitão dessas seleções antes mesmo de o jogo começar. As seleções retrocederam, pois antes mesmo de o juiz assoprar o apito pela primeira vez teriam enorme prejuízo em campo. Em protesto, porém, os alemães posaram para a foto oficial de seu primeiro jogo com as mãos encobrindo a boca, como forma de denunciar a censura, enquanto nas arquibancadas a ministra do Interior do país usava a braçadeira.
O secretário de Políticas Sociais da Confederação dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT), Elias Jordão, avalia que o quadro em relação aos direitos fundamentais na Copa deste ano realmente é muito triste e o pior exemplo que um evento desse porte, internacional e de grande apelo popular, pode dar; essas questões atingem todos nós como seres humanos e como trabalhadores, e as organizações internacionais e locais de representação dos trabalhadores devem protestar e denunciar, isso não pode ser aceito.
Para o integrante da Executiva da Contraf-CUT, Adilson Barros, o que temos visto no Catar é pura manifestação institucionalizada de discriminação e ódio contra mulheres, pessoas LGBTQIAP+ e trabalhadores, por isso, o movimento sindical, em todas as suas esferas, locais, nacionais e internacional, deve se mobilizar para denunciar e protestar contra essa postura, pois quem se cala está sendo conivente com esses crimes, que atingem a civilização como um todo. Adilson, que também é militante LGBTQIAP+, entende que um evento da grandeza da Copa do Mundo precisa ser inclusivo e diverso, mesmo quando é realizado em países com leis que atacam os direitos fundamentais, os direitos humanos. Os LGBTQIAP+ estão no futebol, estão nesta Copa e merecem que sua dignidade seja mantida, conclui.
Fonte: CONTRAF